Lisboa, amor e tragédia

Minissérie baseada no romance português “Os Maias”, de Eça de Queiroz, revisita normas sociais e papéis de gênero da cultura portuguesa do século XIX

Palácio Nacional de Sintra, Portugal (Azulejos / detalhe)

Eneida Quadros Queiroz

 

Os Maias (Emílio di Biasi / Del Rangel. Brasil, 2001)

 

Uma minissérie cuja trilha sonora de fundo é o prelúdio da ópera Tristão e Isolda, de Wagner? Prepare suas coronárias! É uma autêntica Tragédia Clássica.

Os Maias, minissérie baseada no romance homônimo de Eça de Queiros, foi, sem dúvida, a obra mais bonita, bem-acabada e audaciosa que a Rede Globo já produziu. Mesmo que você seja um daqueles que torce o nariz para televisão, dê uma oportunidade aos Maias: uma história que se desenrola num adágio lento e pungente, que te traga por completo. Como se não bastasse ser uma tragédia, é também uma análise desencantada dos costumes da sociedade portuguesa em fins do século XIX. Os Maias do Eça está para a literatura portuguesa como as obras de Balzac e Victor Hugo para a literatura francesa, e as obras de Machado de Assis para a literatura brasileira.

A obra narra a história de uma família aristocrática lisboeta (de sobrenome Maia) ao longo de três gerações, centrando-se mais na última, com a história de amor incestuoso entre Carlos Eduardo e Maria Eduarda.

Os acontecimentos fatais são costurados nas maiores delícias do idealismo romântico, para acabarem frios num desencanto realista da virada do século. Pedro da Maia (encenado por Leonardo Vieira) é emocionalmente instável. O pai, Afonso (Walmor Chagas), era um homem ligado às ciências e cético das superstições do mundo. Ficava decepcionado com as instabilidades e fraquezas românticas do filho único, mas sabia que parte da culpa residia em si mesmo, ao ter permitido que a esposa carola o mimasse e o educasse por um padre. Daí vemos uma das primeiras críticas de Eça à sociedade portuguesa, cuja criação e índole estaria mais para Pedro do que para a fibra de Afonso.

Após a morte da mãe, Pedro cai numa depressão longa e só volta a despertar para a vida quando descobre o amor. Ele apaixona-se por uma moça muito rica, Maria Monforte (Simone Spoladore), mas sem berço. Ela não provinha de família aristocrática como a sua, e sua riqueza era fruto do enriquecimento do pai com o tráfico de escravos para o Brasil, por isso era chamada na alta sociedade portuguesa de “a negreira”. Mais escandaloso que o tráfico, era o fato do pai ser um comerciante: o trabalho era uma das marcas de desprestígio na sociedade portuguesa, preconceito que o Brasil também herdou.

A passagem romântica do casal por Sintra, nas muralhas do Castelo dos Mouros, passeando de charrete pelas ruelas antigas, ou brincando de balanço num jardim idílico, como uma tela de Fragonard, é um dos momentos mais lindos da minissérie. Quando Pedro tenta apresentar Maria Monforte ao pai, ele só pergunta ríspido ao filho: como te atreves? Maria vai embora com raiva da fraqueza de Pedro, que não enfrenta o pai. Temos, então, uma sequência do romantismo e da personalidade emocionalmente instável de Pedro, que rejeitado por Maria passa a ter febres, não come, escreve inúmeras cartas e passa horas sob uma chuva torrencial ao pé da janela dela. Comovida por aquele amor tão grande, Maria Monforte casa-se com ele, sem as bênçãos de Afonso. O casal tem dois filhos: primeiro Maria Eduarda, depois o bebê Carlos Eduardo.

Monforte, ao contrário de Pedro, é vivaz, animada, mas parece estar sempre insatisfeita. Ela apaixona-se por um hóspede de seu marido, um italiano chamado Tancredo, e foge com ele, levando apenas Maria Eduarda consigo. Para o sucesso da fuga, o melhor seria que não levasse criança nenhuma, mas ela alega que não conseguiria se separar da menina, que já contava alguns aninhos. A verdade é que na obra queirosiana, as personagens femininas representam o pecado da luxúria e a perdição dos homens. Os historiadores tentam explicar esse fato com base na rejeição materna que Eça sofreu, a mesma que sofrerá o personagem de Carlos Eduardo.

Quando Pedro chega em casa e descobre que Maria fugiu com o italiano, levando sua filha consigo, fica desconsoladamente perturbado e volta para a casa do pai com Carlos nos braços: Afonso finalmente conhece o neto. Naquela mesma noite, Pedro se mata com um tiro no peito e Afonso, destroçado, promete criar o neto “à inglesa”, para que ele seja emocionalmente mais forte e não se deixe levar pelas loucuras da paixão.

E assim se dá. Carlos cresce fazendo esporte (uma novidade para a época), bem-educado, bem vestido, um verdadeiro gentleman elegante. Era um típico dândi. E para mostrar como a criação que tivera foi arrojada, volta médico de Coimbra, uma profissão ainda não inteiramente bem vista no meio aristocrático. Afonso nunca lhe escondeu que o pai se suicidara, só não lhe contava o motivo, e julgava que Maria Eduarda já tivesse morrido. Um empregado seu, alguns anos após o suicídio de Pedro, conseguiu encontrar Maria Monforte em um bordel em Paris. O pai traficante já morrera, Tancredo também, em duelo com outro homem pelo seu amor, e ela perdera tudo. Vira-se sozinha, sem dinheiro, com uma filha para criar. Começa, assim, a prostituir-se em bordéis de luxo. O empregado de Afonso vê uma foto mortuária de uma menininha, envolta em flores, e pergunta se é a filha que morreu: ela diz que sim.

De fato, o avô parece ter tido sucesso na criação de Carlos, pois dos vários casos e amantes que tinha, o rapaz solteiro sempre continuava a manter-se racional e discreto: saciava seus “desejos masculinos” (embora mulheres solteiras não pudessem ter desejos femininos), mas não se apaixonava de verdade, a ponto de cometer loucuras. Tudo muda quando ele conhece uma mulher “de estatura mais alta que uma criatura humana, caminhando sobre nuvens, com ares de Juno que remonta ao Olimpo”. Vinha acompanhada de um homem, uma criança, serviçais, e uma cadelinha branca: parecia ser uma família de muito requinte. Carlos não sabia, mas era Maria Eduarda, sua irmã. O próprio Eça diz que os dois, belos, elegantes e educados, destacavam-se naquela sociedade simplória, e era natural que se apaixonassem. O romance veicula sobre Portugal uma perspectiva muito derrotista. Tirando a natureza (notadamente o Tejo, Sintra e Santa Olávia), tudo e todos são descritos como uma “choldra ignóbil”. Predomina uma visão de estrangeirado, de um Eça que era diplomata e viveu muitos anos fora de Portugal, de quem só valorizava as ditas “civilizações superiores”.

Carlos finalmente cai de amores por alguém e, apesar de sua educação, brota a hereditariedade do pai e, assim como ele, só pensa em fugir com quem ama, ainda que Afonso viesse a recriminar essa união de mera concubinagem do neto com uma distinta mulher casada. O livro foi escrito em um período que as ciências floresciam, e o peso da hereditariedade não foi esquecido por Eça. O que Carlos não sabia, e vem a descobrir da pior forma, é que Maria Eduarda não era formalmente casada com aquele homem (o senhor Castro Gomes) e a menina Rosa era filha de outro, um irlandês, anterior a ele. Isso hoje não nos parece ser nada demais, mas naquela época implicava em alguns maus passos na vida de uma mulher: 1) morar com um homem e não ser casada com ele; 2) ter tido ainda outro homem anterior a esse (a sucessão de amantes em sua vida, ou o passado sexual da mulher amada, era aviltante para Carlos Eduardo e o livro chega a mencionar: “era o horror desse outro homem, o irlandês, que surgia agora, e que a tornava de repente mais maculada”); 3) ser mãe solteira.

Tratava-se de uma acompanhante de luxo, uma cocote, a quem Castro Gomes pagava para ter sexo e viver ao seu lado em algumas cidades pelo mundo. Carlos, então, descobre mais uma “má qualidade” de Maria Eduarda, a pior de todas: 4) prostituição de luxo. Ele acredita que ela o fez de bobo, fazendo-se passar por “honrada” mulher casada só para fisgá-lo. Uma das cenas mais fortes do livro e da minissérie é aquela na qual Carlos vai tirar satisfações de Maria Eduarda. Estava com tanto ódio, que trazia um cheque com valor alto no bolso para pagá-la e humilhá-la. Ali resume-se como a sociedade da época, fosse no Brasil, em Portugal ou na França, tratava as mulheres.

Maravilhosamente interpretado por um Fábio Assunção com os “olhos negros dos Maias” (o que definitivamente conseguiu deixá-lo ainda mais bonito), o olhar de Carlos oscila entre a altivez irredutível de um homem que se julga traído e o enternecimento pela história de vida sofrida daquela mulher que tanto ama. O espectador percebe que, por breves frações de segundos, ele só deseja abraçá-la e dizer que nada mais importa, mas logo recobra a indignação do orgulho masculino ferido e só abre a boca para dizer coisas duras. Se analisarmos o texto dessa cena, praticamente idêntico ao livro, vemos toda a intimidade de um século XIX patriarcal e machista diante de nós. Vendo-a chorar, julgando-se ele o ferido e ela a agressora, Carlos diz com raiva:

_ Não sei porque chora, não há razão para chorar…

Ela pede que Carlos a escute e relembra-o quantas vezes tentou contá-lo tudo, dizendo que tinha algo sério a dizer, mas ele a impedia. Dela só queria ouvir coisas leves e boas. No feminismo, inclusive, isso hoje tem um nome:manterrupting”, que é o hábito de muitos homens interromperem a fala feminina, quase sempre para mostrar que sabem mais. No caso de Carlos, era para dizer que a amava, uma interrupção doce, que envolvia Maria Eduarda num enlevo, num sonho de permanecer assim e nunca contar sua história. E ela pergunta:

_ Não te lembras?… Eu queria te contar, mas tive medo: medo que não me quisesse mais. Medo que me julgasse severamente antes que eu pudesse provar que era uma boa mulher: digna da tua estima. Se há nódoas no meu passado, não é culpa minha.

_ Ah não? Então a culpa é de quem?!

A pergunta lenta e indignada de Carlos é de quem, do alto de sua posição social privilegiada, acredita que são as pessoas, somente, as responsáveis pelos sucessos ou infortúnios de suas vidas. E que se alguém tem alguma nódoa em seu passado foi por más escolhas e culpa unicamente sua. Maria Eduarda responde entre lágrimas, como a se defender:

_ Da vida, das circunstâncias… das vicissitudes. A minha filha passava fome, quando eu conheci Castro Gomes.

_ Por que não me disseste ao menos depois, aqui nos Olivais, quando sabias que tu eras tudo para mim?

_ Eu tentei, eu tentei… mas eu tive medo que teu amor mudasse. Que ias já tratar-me sem respeito, perder a afeição à pequena, querer pagar as despesas da casa.

_ Por que não me disseste? Eu teria te amado do mesmo modo. Por que mentiste, Maria Eduarda?

Por ser homem, os medos que habitam a alma de Maria Eduarda não lhe são compreensíveis. Por não viver diretamente a opressão do machismo, os receios de Maria Eduarda parecem infundados diante do amor que ele sente por ela. Carlos realmente acredita que se soubesse que Maria Eduarda era uma cocote (e não uma Juno que remonta ao Olimpo), desde a primeira vez que a viu, a teria amado do mesmo modo: Maria Eduarda sabe que não. Ela chega a dizer “tu és homem, não compreendes estas coisas… Olha para mim! Por que não olhas para mim? Um instante só, não voltes o rosto, tem pena de mim…” e ajoelha-se na frente dele, segura-lhe a mão e pede perdão. Carlos irrita-se com aquela suposição de que era sua irredutibilidade que os afastava, e volta a martelar quem era a única culpada pelo fim do romance naquele recinto:

_ É a tua mentira que nos separa. A tua horrível mentira e a tua mentira somente! Mesmo que eu pudesse perdoar-te, a tua mentira horrível sempre estaria entre nós a separar-nos! Sempre. E eu não teria um único dia de confiança e de paz…

Eça diz que “uma indignação ergueu-a, direita e soberba. Os seus olhos de repente secos rebrilharam, revoltados e largos, no mármore da sua palidez” e ela responde:

_ Sai da minha frente. Nunca mais te quero ver.

_ Não te portes como se fosses vítima, o ofendido fui eu! Mentiste em tudo, Maria Eduarda. Tudo era falso, falso o teu casamento, falso o teu nome, falsa a tua vida toda… Assim como provavelmente são falsas essas lágrimas.

_ Que queres tu dizer? Que estas lágrimas e estas súplicas são falsas? Que finjo tudo para não te perder, para ter outro homem, agora que Castro Gomes me deixou?

_ E por que não?

É então que a personagem de Maria Eduarda cresce e humilha Carlos Eduardo com a verdade, deixando claro que ele, e a sociedade como um todo, apaixonava-se pelas aparências apenas. Um mundo de teatros e dissimulações, no qual as verdadeiras histórias pessoais jazem sob máscaras e disfarces:

_ E eu? Por que hei de acreditar nessa grande paixão que me juravas? O que é que tu amavas então em mim? Era eu ser a mulher de outro, o nome, o requinte do adultério, as toiletes?… Ou era eu própria, o meu corpo, a minha alma… e o meu amor por ti?… Eu sou a mesma, olha bem para mim!… Eu sou a mesma! … Só uma coisa é diferente: a minha paixão! Essa é maior, desgraçadamente, infinitamente maior.

_ Ah se isso fosse verdade! Como posso acreditar numa embusteira?

_ Se é assim que vês, acabou-se. É melhor que vás embora. Acabou tudo para mim.

No livro, a cena termina com Carlos pedindo Maria Eduarda em casamento, diante daquele amor verdadeiro que ela nutria e história de vida tão sofrida. Na minissérie, a cena termina com Carlos abandonando-a, conforme ela emponderadamente conseguiu impor, ainda que aos prantos. Mais uma bela interpretação da atriz Ana Paula Arósio, também espantosamente linda com os olhos negros dos Maias.

Além da hereditariedade, Eça trouxe a nascente psicologia para a complexidade de seus personagens. Ao conversar com o amigo João da Ega sobre o término do romance com Maria Eduarda, informa-lhe que dissera os diabos a ela e que só não tivera coragem de deixar o cheque, pois teria sido baixo e brutal. Ega pergunta:

_ Quando disseste os diabos para Maria Eduarda, pensavas na tua mãe?

Tristão e Isolda de Wagner volta à cena, para a resposta de Carlos:

_ Pensei no meu pai.

Ali há algo mais do que o recorrente machismo contra a figura prostituída de Maria Eduarda, há resquícios de um trauma: Carlos Eduardo cresceu à sombra da rejeição materna e impactado por uma história de amor brutal que tirara a vida de seu pai, em decorrência de traição feminina. De certa forma, ao sentir-se traído, ele revive a história do pai e sente-se novamente abandonado pela mãe.

Na minissérie, o personagem de Carlos só se permite chorar e lamentar a possibilidade de perdê-la em casa, como escondido em seu casulo, na presença apenas da ama que o criou, nunca na presença do amigo Ega ou mesmo de Maria Eduarda – uma escolha acertada se considerarmos o comportamento masculino habitual da educação machista, na qual até os homens saem feridos, ao serem tolhidos de demonstrar sentimentos. Ele retorna à Maria Eduarda e pergunta apenas: “queres casar comigo”? É sua forma de pedir perdão por tudo que dissera, sem que saia de sua boca a palavra “desculpa”, uma dificuldade até hoje corriqueira da personalidade masculina tolhida e subjugada pelo mesmo machismo que tolda as mulheres. O pedido de perdão está subentendido em seu rosto, em sua ânsia, em seu pedido de casamento, e Maria Eduarda compreende tudo, aceitando-o prontamente.

É uma pena que essa história de amor tenha que acabar de forma tão trágica, quando os dois descobrem-se irmãos. A psicologia volta a marcar presença, e Carlos – mesmo sabendo que a mulher que ama é sua irmã – não deixa de a desejar. Nas palavras do próprio Carlos: “Pois tu imaginas que por me virem provar que ela é minha irmã, eu gosto menos dela do que gostava ontem, ou gosto dum modo diferente? Está claro que não! O meu amor não se via duma hora para a outra acomodar a novas circunstâncias, e transformar-se em amizade… Nunca! Nem eu quero! Era uma brutal revolta – o seu amor defendendo-se, não querendo morrer, só porque as revelações dum Guimarães e uma caixa de charutos cheia de papéis velhos o declaravam impossível, e lhe ordenavam que morresse”.

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