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Criada na ditadura, continua em vigor a lei que proíbe manifestação política de estrangeiros

Em março deste ano, um inquérito policial foi aberto a partir de uma denúncia anônima contra a professora Maria Rosaria Barbato, da Faculdade de Direto da Universidade Federal de Minas Gerais. Ela foi acusada de participar de atividades sindicais e atuar em partidos políticos. Por ter nacionalidade italiana, suas ações configurariam crime de acordo com o Estatuto do Estrangeiro, lei criada em 1980 durante o governo do último presidente militar, o general João Batista Figueiredo. Em 1985 veio a redemocratização do país, mas aquela herança da ditadura persiste intocada até hoje.

Ao final, o processo não foi adiante e o inquérito foi trancado, pois a própria Procuradoria da República entrou com um habeas corpus em favor da professora, que foi concedido pela Justiça Federal. Mas o caso despertou interesse pelo inusitado da situação e pelo anacronismo da lei. A aplicação do Estatuto do Estrangeiro para punir engajamento político é fato raro no Brasil democrático, e parece ter sido motivada pelo atual momento de ânimos acirrados no país.

No dia 16 de abril, a lei motivou uma nota da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef). O comunicado alertava os membros da corporação de que estrangeiros participantes de manifestações políticas poderiam ser expulsos do Brasil. E mencionava a alegação de que venezuelanos, peruanos, argentinos e paraguaios estariam entrando no país para participar dos protestos contrários ao impeachment da presidente Dilma Rousseff, o que configuraria uma ameaça à soberania nacional.

Segundo a coordenadora do Laboratório de Direitos Humanos da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Vanessa Batista Berner, o Estatuto do Estrangeiro fere o artigo 5o da Constituição de 1988, referente à inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. “A Constituição não recepcionou a proibição de qualquer atividade política e intelectual dos estrangeiros, mesmo que de passagem pelo território nacional”, afirma. Tal resquício do regime autoritário é hoje uma exceção em relação às legislações de outras democracias: “Em pesquisa recente, verificamos que na América do Sul apenas o Brasil tem legislação proibitiva em relação à manifestação política de estrangeiros. Na União Europeia, os estrangeiros tampouco são proibidos de se manifestarem politicamente, cabendo a cada país regulamentar internamente os níveis de participação política permitidos”, explica.

Estatuto do Estrangeiro

Para Vanessa Berner, a utilização do Estatuto do Estrangeiro nos tempos atuais se deve ao fortalecimento do conservadorismo político: “Assistimos, no Brasil, a um avanço da onda conservadora que é crescente em nível mundial, com conotações até mesmo fascistas. A Polícia Federal tem como função investigar crimes, não sendo de sua competência processar e julgar cidadãos estrangeiros, em quaisquer situações, por suas convicções políticas. Essa nota exorbita as funções do órgão e demonstra a arbitrariedade com que os membros das instituições do Estado têm atuado no país atualmente”, argumenta.

O brasilianista James Green morava em São Paulo quando o Estatuto do Estrangeiro foi aprovado há 36 anos. “Eu estava fazendo um curso de pós-graduação em Ciências Sociais da USP e me lembro muito bem deste momento. Eu me preocupava muito porque participava tanto do movimento contra a ditadura quanto do movimento LGBT”, conta. Para o historiador norte-americano, a lei tinha dois objetivos principais na época de sua criação: “O governo se preocupava com a chegada de refugiados argentinos, pois era um momento muito drástico de repressão naquele país, e o Estatuto abria a possibilidade de expulsar padres católicos, que estavam muito envolvidos nos movimentos sociais e populares contra a ditadura”.

Green relembra um caso de aplicação da lei, em 1984, envolvendo o brasilianista Thomas Skidmore, também norte-americano, falecido recentemente. Após realizar uma conferência na Bahia sobre a política vigente no país, Skidmore foi chamado para depor na Polícia Federal e ameaçado com base no Estatuto do Estrangeiro: “Houve uma campanha nacional a seu favor, defendendo o seu direito de permanecer no Brasil e opinar sobre a política. Ao final, o governo recuou e não houve problema”, lembra Green.

O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) é um dos que propõem reformas à legislação. “De acordo com o Estatuto, um estrangeiro que mora no Brasil não pode participar de qualquer tipo de manifestação política ou social, não pode aderir a um partido, sindicato, ONG, grêmio estudantil ou qualquer outra entidade semelhante e, se violar esta regra absurda, estará cometendo um crime. A lei é tão ridícula que permite inclusive que o governo disponha a proibição de atividades culturais, artísticas ou folclóricas organizadas por estrangeiros”, critica o deputado.

O Projeto de Lei 5293/2016, de sua autoria, está em tramitação no Congresso. Ele modifica os critérios para expulsão dos estrangeiros e promove a adequação da legislação ao direito contemporâneo e aos tratados internacionais de direitos humanos. Para Wyllys, os avanços deveriam ser bem maiores no futuro: “Ainda há outras questões nesse Estatuto e na legislação sobre estrangeiros, inclusive no texto constitucional, que deveriam mudar. Por exemplo, o Brasil deveria reconhecer aos estrangeiros que residem legalmente no país o direito ao voto e os demais direitos políticos, como outros países da região já reconhecem aos brasileiros que moram neles”, defende. Para um país tido como acolhedor ao estrangeiro, faria todo o sentido. (Eduardo Seabra)

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