Sorria para a caixa

Quase extintos, fotógrafos “lambe-lambe” se adaptam ao digital e seguem atuando nos subúrbios

Personagem histórico do espaço urbano brasileiro, o fotógrafo “lambe-lambe” teve seu período áureo de atuação entre o início do século XX e a década de 1960. Mesmo praticamente extinta, a profissão ainda sobrevive em municípios do interior e na região metropolitana do Rio de Janeiro.

Adilson Jesus da Silva, de 60 anos, hoje se define como “lambe-lambe digital”: imprime suas fotos em uma cabine com computador na Praça Nossa Senhora da Conceição, em Queimados, onde trabalha há 35 anos. “Não uso mais a máquina lambe-lambe porque não tem matéria-prima. Deixo em casa guardada, pois é uma relíquia: já tem 72 anos”, comenta. O termo lambe-lambe, no passado considerado depreciativo por muitos desses profissionais, não parece incomodar mais. A origem do nome é controversa, mas segundo Adilson ele surgiu da prática de lavagem das fotografias: “A maioria dos fotógrafos que conheci, na hora de lavar o retrato, passava a língua para ver se estava salgado, se já tinham saído as químicas ou não. Aí virou uma tradição. Eu nunca precisei lamber,conseguia sentir pelo tato da mão”, relembra.

Oswaldo de Andrade Neves adotou a profissão após ter sido demitido de seu trabalho na antiga Fábrica Nova América, nos anos 1960. Hoje com 71 anos, ele continua a fotografar na Praça da Matriz, em São João de Meriti, onde atua desde 1969. “Aqui, naquela época, chegou a ter 12 fotógrafos. Agora estou sozinho, muitos morreram, outros foram trabalhar com outras coisas”, conta. Mesmo com a clientela reduzida, o ofício continua a ser útil para complementar sua renda de aposentadoria: “Ganho uma mixaria, apenas um salário mínimo, e minha esposa sofre de diabetes. Aí qualquer coisa já quebra o galho para comprar remédios”.

A Praça Chopin, em Nova Iguaçu, é o ponto da lambe-lambe Vauleide Rodrigues há 30 anos. Ela e sua irmã são a terceira geração da família a atuar com fotografia ambulante. Vauleide continua a cobrir aniversários e casamentos, mas, como os outros, trabalha principalmente com fotos para documentos: “Nos órgãos de identificação as fotos saem horríveis, eles não têm paciência para tirar uma boa foto. Só apontam a câmera e apertam o botão. Então os clientes preferem vir aqui”, diz ela.

“Infelizmente no município do Rio de Janeiro não existem mais fotógrafos lambe-lambe em atuação. Entretanto, no estado ainda há lugares onde esse profissional sobrevive, pelo fato de que nas pequenas cidades as concorrências no campo fotográfico são naturalmente menores”, afirma o pesquisador Abílio Águeda, especialista em lambe-lambes, com doutorado sobre o tema pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Apesar de manterem o nome, os lambe-lambes de agora não utilizam mais suas tradicionais máquinas-caixote. Verdadeiros laboratórios portáteis de revelação fotográfica, as antigas câmeras de madeira realizavam processos químicos para produzir negativos e fotografias em poucos minutos. Hoje, servem apenas como mostruário, enquanto os fotógrafos trabalham com máquinas digitais e impressoras. “O termo lambe-lambe é utilizado nesses casos mais como uma forma afetiva do que propriamente relacionado à tecnologia fotográfica utilizada por esses profissionais”, afirma Abílio. Vauleide confirma que arma a velha máquina de madeira, herdada de seu avô Francisco, apenas para atrair o público. “Mas, se precisar, eu boto ela para funcionar! Já fiz até foto colorida naquela caixinha”, garante a lambe-lambe de Nova Iguaçu.

O fotógrafo ambulante surgiu na Europa do século XIX com a invenção do ferrótipo, processo fotográfico que barateou os custos de produção de retratos e chegou ao Brasil no início do século XX. “O trabalho livre e a imigração possibilitaram a formação de um mercado consumidor que favoreceu a atuação do fotógrafo ambulante. Os primeiros a atuarem no país eram em sua grande maioria imigrantes, utilizando as máquinas fotográficas que traziam de seus países de origem”, explica Abílio. Segundo o pesquisador, o ofício do lambe-lambe ampliou o acesso à fotografia entre os brasileiros: “Por produzir uma foto mais barata em relação aos caros e sofisticados estúdios fotográficos, o lambe-lambe foi um dos principais responsáveis pela democratização e popularização do acesso à autoimagem de grupos e indivíduos, principalmente os de menor poder aquisitivo”, afirma.

A demanda pelos serviços de lambe-lambe começou a declinar na década de 1970, com a popularização das cabines de retrato Photomatone e câmeras Polaroide de uso pessoal. Abílio também atribui o fenômeno a mudanças ocorridas no uso dos espaços públicos desde os anos 1980: “Atuando profissionalmente em ruas, praças, largos e jardins públicos, a sensação de violência e da insegurança nos grandes centros urbanos do país modificou hábitos, costumes e formas de sociabilidade que se manifestavam nesses locais, questões que se refletem na procura pelos serviços dos lambe-lambes”, argumenta.

Para o fotógrafo e pesquisador Pedro Karp Vasquez, o lambe-lambe continua a ser a cara do Rio: “Ele desempenha sua atividade ao ar livre, em praça pública, contribuindo para afirmar aquilo que se convencionou chamar de ‘carioquice’: uma relação lúdica e prazerosa com a vida e com o espaço urbano. O estúdio do lambe-lambe é a rua, de modo que aqueles que poderiam se sentir inibidos em frequentar um estúdio fotográfico formal sentem-se à vontade em posar para o lambe-lambe nas praças, nas quais não existe hierarquia nem solenidade”.

De acordo com Vasquez, a razão de a profissão se manter apenas longe das regiões centrais é reflexo de um comportamento social: “Não seria exagero afirmar que hoje a verdadeira vida de rua ocorre nas favelas e nos subúrbios, pois o pessoal da zona sul é mais inibido e, muito possivelmente, tem vergonha de posar em praça pública. Quanto a mim, nunca tive tal vergonha e continuei a fazer meus retratos 3×4 na Praça XV até que o último lambe-lambe saísse de circulação. Caso algum deles volte, certamente estarei lá para prestigiá-lo”. Algum lambe-lambe disposto a se arriscar? (Eduardo Seabra)

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