Índio escravo para El Rey

decifre

Este manuscrito retrata um dos episódios mais violentos do processo de interiorização do domínio português na América Colonial: as “Guerras Justas”, na região do Rio Negro.

Três diferentes tipos caligráficos compõem o documento. Predomina a letra do escrivão João Duarte da Cruz, mas aparecem também as assinaturas de próprio punho do cabo João Paes do Amaral e do padre jesuíta Jozeph de Souza, responsáveis pela Tropa de Guerra e Resgate.

O registro do escrivão foi cunhado com caligrafia típica setecentista brasileira, em letra processual híbrida cursiva. A tendência dextrogira (inclinação à direita), aliada à alta cursividade (entrelaçamento entre letras), confere velocidade e fluidez ao ato da escrita, agilidade ao ductos e leveza na execução do traço.

A letra é de pequenas dimensões, apresentando constância em sua forma, com poucas variações do desenho. Nota-se o uso constante do S longo em palavras como Signal, aSignou e paSei. O mesmo ocorre com as letras ramistas i, j e y, em vocábulos de origem indígena (CabiCabary, Jubahy) e portuguesa (Jndio, jdade, direyto, beyço, debayxo, Rey, arrayal).

O escrivão tende a respeitar a divisão das palavras. As exceções são as junções realizadas especialmente entre preposições, conjunções ou artigos e o substantivo subsequente (danasção, dej dadede, dopeito, daparte, eos M.R.Pe, doSñor, aEl Rey). O uso de abreviaturas é modesto, e elas são majoritariamente empregadas em títulos como Srª (Senhora), M. R. Pe Miscionro (Mui Reverendo Padre Missionário) e Sñor (Senhor), mas também em direita (dirta).

No canto inferior direito há o número 15, equivalente ao registro e/ou folha de registro de origem, apontando a quantidade de assentamentos realizados. Os recentes carimbos de tombamento da biblioteca, na região central inferior, demarcam controle e propriedade recente. Atualmente, este documento faz parte da Coleção Lamego, sob custódia do Instituto de Estudos Brasileiros da USP.

 

Sonia Troitiño é professora da Universidade Estadual Paulista e co-organizadora de Cartas do exílio: a troca de correspondência entre Marina e Julio de Mesquita Filho (Terceiro Nome, 2006).

 

Manaós sucumbem à “guerra justa”

O império luso se via diante da difícil tarefa de garantir sua posse em território brasileiro diante das investidas holandesas e francesas, e precisava enfrentar a resistência de grupos indígenas para angariar mão de obra escrava em quantidade suficiente para a manutenção das propriedades já instaladas.

Em setembro de 1727, com a justificativa de reagir aos ataques liderados pelo cacique Ajuricaba, a Tropa de Guerra e Resgates do Rio Negro desencadeia mais uma “guerra justa” – resposta portuguesa à recusa indígena em aceitar imposições religiosas, comerciais, fiscais ou culturais por parte de seus dominadores. Desta vez, sob o comando do cabo João Paes do Amaral, acompanhado pelo padre José de Souza. Diante do poderio militar português, os guerreiros da nação manaó são vencidos, após honrosa resistência. Como consequência, os indígenas são capturados, escravizados e comercializados. Este manuscrito informa que um manaó, “escravo legítimo da Tropa de Guerra”, é dado diretamente a El Rey, como forma de pagamento do mais conhecido dos impostos coloniais: o Quinto.

 

Solução do “Decifre”

 

Cabicabary Jndio danasção Manao dej dade pouco mais ou menos de Quarenta

annos Com o Signal de hum R. aScima do peito direyto e dous mais pRetos digo hũ

preto abaixo do Beyço de bayxo da parte dirta Vassalo do Principal Jubahy

Jnimigo dos Portuguezes defençor dos Aliados do Principal Guajuricaba e o

posto deszecução das ordens e dispoziçoes do Sñor General Escravo legi

timo da Tropa de Guerra dado pellos Quintos aEl REy. João Duarte da Crus

escrivão da Tropa de Guerra paSsey o prezente Registo q aSsignou o Capitam

Comandante João Paes do Amaral Cabo da dita Tropa e o M. R. Pe Miscionro

Joseph de Souza da Companhia de Jezus, neste Rio negro e Arrayal de NoSa Srª do Carmo e Sancta Anna aos 22 de Setembro de 1727 annos.

Jozeph de SouSa

João Pais do Amaral

15

 

Transcrição atualizada

Cabicabarí índio da nação manaó de idade pouco mais ou menos de quarenta anos, com o sinal de um R. acima do peito direito e dois mais pretos, digo, um preto abaixo do beiço debaixo da parte direita, vassalo do Principal Jubaí, inimigo dos portugueses, defensor dos aliados do Principal Guajuricaba e oposto de execução das ordens e disposições do Senhor General, escravo legítimo da Tropa de Guerra, dado pelos Quintos a El Rei. João Duarte da Cruz, escrivão da Tropa de Guerra passei o presente registro que assinou o Capitão Comandante João Paes do Amaral, cabo da dita Tropa e o Mui Reverendo Padre Missionário José de Souza da Companhia de Jesus, neste Rio Negro e Arraial de Nossa Senhora do Carmo e Santana, aos 22 de setembro de 1727 anos.

José de Souza

João Paes do Amaral

15

 

Fonte: Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP), Coleção Alberto Lamego.

Referência: Registro feito por Jozeph de Sousa e João Paes do Amaral de um índio, da nação Manao, como escravo legítimo da tropa de guerra, dado em pagamento dos quintos. Arraial de N.S. do Carmo e Santana, 22 de setembro de 1727.  IEB/USP-COL. ML, 43.64

 

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