Soberano ou sitiado?

Na América Latina, acúmulo do poder presidencial é sustentado (ou enfraquecido) pela relação com o Congresso

Andrés Malamud

“Levo o pesar de não ter podido fazer todo o bem que pretendia”. A impotência manifestada por Getulio Vagas em sua carta de despedida, em 1954, dá o que pensar. Será que o presidente da República não tem tanto poder como costumamos imaginar?

A resposta é: depende. Teoricamente, o presidencialismo é um regime político baseado na separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Na prática, porém, a maioria das experiências desse regime tem operado de modo diferente. É o caso de boa parte dos países da América Latina. Desde que Simón Bolívar declarou, em 1826, que “os novos Estados da América precisam de reis com o título de Presidente”, a região se caracteriza pelo acúmulo de poder no mais alto cargo do Executivo.

O hiperpresidencialismo, como o fenômeno passou a ser chamado, contraria o conceito original de presidencialismo. Por isso, há quem defenda até mesmo uma redefinição do que seria o regime: não mais associado à separação de poderes, apenas ao mandato fixo e com tempo determinado do governante.

A concentração do poder, porém, não é garantia de estabilidade política. Ao longo do século XX os países latino-americanos sofreram ondas de grande instabilidade. Mesmo presidentes poderosos como Vargas (1930-1945 e 1951-1954) e o argentino Juan Domingo Perón (1946-1955 e 1973-1974) deixaram o cargo antecipadamente por causa de golpes de Estado. A partir da década de 1980, ao mesmo tempo em que a democracia se consolidava em quase todo o continente, cerca de vinte presidentes abandonaram a função antes de acabar seu mandato por conta de impeachments no Congresso ou de mobilizações populares.

Este fenômeno – em que o chefe de Estado cai, mas não a democracia – foi chamado de “nova instabilidade política” e tem duas caraterísticas. Em primeiro lugar, já não são os militares que decidem a sucessão presidencial, mas o Congresso ou o Judiciário, pautados pela Constituição. Em segundo lugar, este novo padrão não afeta toda a região, apenas alguns países. No Chile, na Colômbia, na Costa Rica, no México e no Uruguai, todos os presidentes do último quarto de século chegaram ao fim de seus mandatos. Enquanto isso, na Argentina, na Bolívia, no Equador e no Paraguai as interrupções presidenciais têm sido frequentes. No Brasil, desde a redemocratização, dois vice-presidentes tiveram que completar períodos constitucionais – José Sarney, de 1985 a 1990, e Itamar Franco, entre 1992 e 1994 – e em 2016 novamente o país vive um processo de impeachment.

Com o hiperpresidencialismo de um lado e a instabilidade política de outro, pode-se avaliar os poderes de um presidente latino-americano a partir de dois critérios: as competências previstas pela Constituição – como a iniciativa legislativa, o poder de veto e a possibilidade de emitir decretos – e a base de apoio político, que depende da sustentação partidária no Congresso.

Na Argentina, como em todos os regimes presidencialistas estabelecidos durante o século XIX, a Constituição promulgada em 1853 foi uma réplica da norte-americana. Porém o seu redator, Juan Bautista Alberdi, tinha se inspirado no chileno Diego Portales para aumentar os poderes do chefe do Executivo. O objetivo era combater a anarquia dos caudilhos das províncias e fomentar o desenvolvimento de um território enorme e despovoado. O presidente ganhou autoridade para remover ou suspender governos provinciais e declarar o estado de sítio e, mais tarde, para introduzir medidas legislativas. Essas competências, somadas a repetidos golpes de Estado que clausuraram o Legislativo e ao recorrente estado de emergência a partir de 1930, acabaram conduzindo à hipertrofia dos poderes presidenciais. Entre 1930 e 1983, o Congresso funcionou apenas durante 31 anos. Em contraste, o Executivo e o Judiciário não deixaram de existir, preservando uma continuidade legal e funcional. Mesmo que os golpes militares tenham derrubado o presidente, seus ministros e, normalmente, todos os juízes do Supremo Tribunal, o número de ministros e magistrados raramente era alterado.

No Brasil, a concentração do poder na Presidência tem também raízes no século XIX. Herdeira do Império, a República inaugurada em 1889 tinha a marca do papel central do chefe de governo em relação à legislatura. O momento de virada viria em 1930: a ascensão de Getulio Vargas à Presidência gerou uma relação mais direta entre o Estado e a sociedade. Em seguida à efêmera Segunda República (1930-1936), que criou a expetativa de desenvolver freios e contrapesos, o Estado Novo (1937-1945) contribuiu para a recentralização do poder no Estado e, dentro dele, no Executivo.

Comparado com as ditaduras argentina e chilena, o governo militar brasileiro iniciado em 1964 tinha suas peculiaridades. Um Executivo não eleito coexistia com um Congresso operante (apesar de fraco) e eleições populares no nível local. Tal convívio influenciaria o processo de democratização, em parte porque a contínua atividade parlamentar permitiu a sobrevivência das elites tradicionais, mas também por conta da criação de novos partidos. Os futuros presidentes Tancredo Neves, José Sarney, Fernando Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, foram parlamentares durante a ditadura.

A Constituição de 1988 concedeu ao presidente brasileiro maior autonomia institucional. Além de poderes reativos, como o veto, ele recebeu proativos, como as medidas provisórias. Por meio delas, o chefe do Executivo é autorizado a promulgar uma legislação por iniciativa própria em casos de relevância ou urgência. Reforça-se, assim, a tradição política brasileira segundo a qual “o Executivo age e a legislatura reage”. O afastamento de Collor, em 1992, deve ser entendido como uma exceção, resultante de um escândalo público e do escasso apoio partidário ao presidente. O impeachment de Dilma Rousseff, por sua vez, tem relação direta com as dificuldades do chamado “presidencialismo de coalizão”.

O exemplo dos Estados Unidos sugeria que só o bipartidismo garante a maioria congressional, sem a qual o presidente não pode governar. A combinação entre presidencialismo e multipartidarismo tem sido considerada um desafio para a estabilidade e a governabilidade democráticas. Ainda assim, tornou-se não apenas predominante como sustentável em toda a América Latina. O problema é contornado por meio de coligações governamentais, recurso de que os presidentes lançam mão para obter apoio no Congresso. No “presidencialismo de coalizão” o chefe do Executivo torna-se simultaneamente líder, árbitro e alvo das divergências entre os partidos – e, eventualmente, as regiões – que constituem a coligação.

Mesmo que a indisciplina partidária seja inimiga de coligações estáveis, no Brasil, do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (iniciado em 1995) ao segundo mandato de Dilma (iniciado em 2015) as coalizões apoiaram as iniciativas presidenciais, encorajadas pelos poderes legislativos que o presidente usa de modo a controlar, e não apenas a contornar, os processos no Congresso. Quanto à estrutura governamental, o papel central é também do presidente, que costuma reservar uma parte desproporcional do gabinete e dos ministérios mais importantes para o seu partido e para funcionários que respondem unicamente a ele. Por estes meios, ao longo das últimas décadas os presidentes brasileiros desenvolveram uma estratégia mais cooperativa do que conflituosa em relação ao Congresso – mas nem por isso renunciaram às suas atribuições, seguindo no controle da agenda legislativa. Os escândalos do mensalão e do petrolão vieram mostrar que, na construção de coalizões de governo, os presidentes não se basearam apenas nas suas competências constitucionais e no seu poder partidário, mas também nos recursos do Estado, por vezes de maneira legal e por vezes não.

Na Argentina, em contraste, a maioria permanente do peronismo no Senado favorece os governos deste partido, enquanto os presidentes não peronistas enfrentam um Congresso opositor. Nem Raúl Alfonsín (1983 a 1989), nem Fernando De la Rúa (1999 a 2001), ambos do partido Radical (UCR), conseguiram finalizar os seus mandatos constitucionais, em parte devido à condição minoritária da sua base de apoio parlamentar.

 

Parlamentares à beira do poder

Na década de 1980, o presidente argentino Raúl Alfonsín promoveu um debate público sobre a necessidade de modificar a Constituição para uma transição a um sistema semipresidencialista. O argumento, baseado nos estudos do cientista político espanhol Juan Linz, era de que a rigidez do presidencialismo favorecia o bloqueio decisório e propiciava golpes de Estado, isto é, a escolha de um presidente desencorajava a cooperação dos perdedores e os levava a apoiar alternativas antidemocráticas. Em contraste, os mecanismos parlamentares flexibilizavam o funcionamento do sistema e promoviam os acordos entre partidos e poderes do Estado. Em 1994, finalmente, um trato entre o presidente Carlos Menem e o ex-presidente Alfonsín permitiu a reforma constitucional e criou a função de Chefe de Gabinete de Ministros, que deveria agir como um primeiro-ministro. Na prática, porém, este cargo sempre funcionou como um ministério inclinado a seguir as ordens do presidente.

No Brasil, uma efêmera experiência parlamentarista aconteceu em 1961. A renúncia do presidente Jânio Quadros levou o vice-presidente João Goulart à primeira magistratura. Porém, as inclinações ideológicas do novo chefe do Executivo incomodaram influentes setores civis e militares, que impuseram um híbrido constitucional com o intuito de condicionar o mandato. Em janeiro de 1963, um plebiscito convocado por Jango reimpôs o regime presidencialista. Anos mais tarde, houve uma segunda tentativa de mudança: a reforma constitucional de 1988 previu um plebiscito, que foi realizado em 1993, para definir o tipo de Estado (república ou monarquia) e regime (presidencialismo ou parlamentarismo). O resultado confirmou a manutenção da república presidencialista.

 

Interrupções presidenciais

Embora o presidencialismo se defina pelo mandato fixo, quer do presidente quer do Congresso, as Constituições preveem “saídas de emergência” para casos excepcionais. Estes acontecem quando o presidente comete faltas graves, cuja caracterização varia de um país para o outro. Em geral, essas faltas estão relacionadas à traição, à corrupção ou ao mau exercício do cargo.

Os mecanismos para destituir o presidente podem agrupar-se em três: cessação automática do mandato, referendo revogatório e impeachment, chamado na Argentina de “juízo político”. A cessação automática, estabelecida pela Constituição das Honduras, permitiu que a Suprema Corte daquele país decretasse o fim do mandato do presidente Manuel Zelaya em 2009 por ter atentado contra uma cláusula constitucional. O referendo revogatório é o procedimento estabelecido pela Constituição da Venezuela, que habilita o eleitorado a decidir se o presidente deve ser destituído. O impeachment, instrumento com o qual os brasileiros estão familiarizados, não outorga o poder de cassar o presidente ao Judiciário nem ao eleitorado, mas ao Congresso, que toma a decisão por maioria qualificada.

 

Saiba mais

AMORIM NETO, Octavio. Presidencialismo e governabilidade nas Américas. Rio de Janeiro: Editora FGV/ Konrad Adenauer Stiftung, 2006.

MALAMUD, Andrés. “O presidencialismo na América do Sul: Argentina e Brasil em perspectiva comparada”. Análise Social, Lisboa, nº 168, p. 715-42, 2003.

PÉREZ-LIÑÁN, Aníbal. Juicio político al presidente y nueva inestabilidad política en América Latina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007.

 

Andrés Malamud é pesquisador principal no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e autor, com Miguel De Luca, do livro La política en tiempos de los Kirchner (Eudeba, 2011).

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