Proibido educar?

Com o pretexto de evitar “doutrinação”, projeto de lei ameaça o ensino escolar e criminaliza a prática docente

Fernando de Araujo Penna

Em audiência pública convocada para discutir o programa “Escola sem partido” na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, em dezembro de 2015, professores e alunos presentes ficaram perplexos: em pleno século XXI, pediu o uso da palavra um cidadão caracterizado como Adolf Hitler. Ele foi impedido de falar por fazer apologia de um regime totalitário que dizimou milhões de pessoas, mas o episódio nos convida a refletir sobre o que querem os defensores dessa proposta.

O programa “Escola sem partido” foi criado por iniciativa do deputado estadual Flávio Bolsonaro, que entrou em contato com Miguel Nagib, criador do movimento homônimo, e encomendou a produção de um projeto de lei (PL 2974/2014), apresentado por ele no dia 13 de maio de 2014 na ALERJ. Algumas semanas depois, seu irmão, Carlos Bolsonaro, vereador no Rio de Janeiro, apresentou proposta semelhante para o município (PL 867/2014). A iniciativa não parou na atuação da família Bolsonaro: Miguel Nagib disponibilizou os anteprojetos de lei estadual e municipal em seu site, e uma onda conservadora tratou de espalhar a iniciativa por boa parte do território nacional. Projetos similares já foram apresentados em nove estados e no Distrito Federal e em diversos municípios, e viraram lei nos municípios de Picuí (PB) e Santa Cruz do Monte Castelo (PR), e no estado de Alagoas. Existe também um projeto de lei tramitando em âmbito federal (PL 867/2015), apresentado pelo deputado Izalci Lucas, que se propõe a incluir o programa “Escola sem partido” na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). A Comissão Permanente de Educação da Câmara dos Deputados já deu parecer positivo no sentido da aprovação.

A proposição do programa “Escola sem partido” parece obter esta grande adesão devido ao seu nome, que pode enganar um desavisado. Ele pressupõe a dicotomia entre uma escola com e outra sem partido. Seus propositores tentam fazer crer que aqueles que se opõem ao projeto defendem que as instituições de ensino sejam dominadas pelos partidos políticos. Na lei aprovada em Alagoas, o nome é ainda mais enganador: “Escola livre”.

Na verdade, a principal questão em disputa é o próprio caráter educacional da escola. Isto fica claro ao se conhecerem a atuação e as ideias do movimento “Escola sem partido”. Ele defende que “professor não é educador”, mas apenas um instrutor que deve se limitar a transmitir “a matéria objeto da disciplina” sem discutir o que acontece na realidade em que os alunos estão inseridos. Caso contrário, estaria usurpando um direito dos pais. Trata-se de uma interpretação equivocada da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que garante aos pais o direito de que seus filhos recebam educação moral e religiosa de acordo com as suas convicções no espaço privado da família, vedando ao Estado qualquer medida restritiva que limite a sua liberdade de mudar ou conservar sua religião ou suas crenças (artigo 12). Os professores realmente não têm o direito de coagir os alunos a mudarem as suas crenças, mas os alunos e seus pais tampouco têm o direito de se negarem a dialogar com outros valores no espaço público da escola.

Ao tentar tornar a educação uma questão privada, responsabilidade exclusiva das famílias, o movimento “Escola sem partido” contraria diretamente a Constituição brasileira, que em seu artigo 205 afirma: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Na proposta que tramita no Congresso, o programa “Escola sem partido” propõe princípios que deveriam orientar a educação nacional, mas a Constituição já determina quais são esses princípios no seu artigo 206. Comparando as duas listas, nota-se que o tal programa mutila intencionalmente os princípios constitucionais. A “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, garantida pela Carta Magna, reduz-se no programa à “liberdade de aprender, como projeção específica, no campo da educação, da liberdade de consciência”. Enquanto a Constituição determina o “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”, o programa trata apenas do “pluralismo de ideias no ambiente acadêmico”. A tentativa de abolir os direitos do professor chega ao extremo na justificativa do projeto, na qual se afirma explicitamente que “não existe liberdade de expressão no exercício estrito da atividade docente”, ou seja, a proposta usurpa dos professores a liberdade de expressão, garantida a todos os cidadãos brasileiros pela Constituição Federal (Art. 5º, IX).

O projeto tenta transformar em lei uma concepção absolutamente deturpada de todos os elementos que constituem o processo de escolarização. Está ultrapassada há décadas, no campo de pesquisa educacional, essa visão da relação entre aluno e professor: o primeiro como uma folha em branco, absolutamente passiva, na qual se pode imprimir o que bem entender, e o segundo como alguém que transmite conhecimentos acadêmicos simplificados. Dos alunos são retirados toda e qualquer iniciativa e pensamento crítico: eles seriam controlados por professores ou partidos de esquerda. A sala de aula seria algo análogo a um cativeiro, pois para esse movimento os alunos são literalmente uma audiência cativa. Esta metáfora é levada ao extremo quando, na página do movimento, a relação entre alunos e professores é entendida como um caso de Síndrome de Estocolmo, na qual os jovens se apegam emocionalmente aos docentes que seriam seus “sequestradores intelectuais”.

Na verdade, o conhecimento escolar é construído justamente no diálogo entre docente e estudante em sala de aula permeada também por diversas vozes que circulam no espaço público. Liberdade de ensinar e liberdade de aprender, indissociáveis, representam os pilares do direito à educação. Remover um deles é fazer este edifício ruir.

Para denunciar uma suposta “doutrinação” nas salas de aula, o site do movimento “Escola sem partido” divulgou pesquisa de opinião na qual docentes foram confrontados com a pergunta “Qual é a principal missão da escola?”, e tinham três opções de resposta: “Formar cidadãos”, “Contribuir para a formação profissional” e “Ensinar as matérias”. A organização comenta o resultado: “78% dos professores brasileiros acreditam que a principal missão das escolas é ‘formar cidadãos’ (expressão que na prática se traduz, como todos sabem, por fazer a cabeça dos alunos)”.

Uma organização que considera “formar cidadãos” o mesmo que “fazer a cabeça dos alunos” deveria ser rechaçada por toda a sociedade. Para os professores, todas as tarefas listadas na pesquisa só podem ser realizadas em conjunto – as matérias, afinal, são ensinadas para formar profissionais responsáveis e cidadãos críticos.

“Você pode estar sendo vítima de doutrinação ideológica quando seu professor se desvia frequentemente da matéria objeto da disciplina para assuntos relacionados ao noticiário político ou internacional”, alerta o site. A dicotomia entre “a matéria objeto da disciplina” e “assuntos do noticiário político ou internacional” é absurda para qualquer um que conheça minimamente a profissão docente. Estabelecer relações entre a realidade cotidiana dos alunos e os conteúdos específicos de cada matéria escolar é um dos requisitos para propiciar uma aprendizagem significativa por parte dos estudantes durante o diálogo nas aulas. Como formar um aluno capaz de interpretar a sua realidade se nem se pode falar dela?

O resultado da aprovação desses projetos de lei país afora não será o de “escolas sem partido”, mas sim escolas sem voz. E sem sentido.

 

Cale-se, professor!

O Projeto de Lei 867/2015, que pretende emplacar o programa “Escola sem partido”, é acompanhado por outras propostas que tentam restringir e criminalizar a prática docente nos estabelecimentos de ensino. Dois PLs (nº 7180 e 7181/2014) querem incluir nos Parâmetros Curriculares Nacionais e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional o princípio do “respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa”. Com este simples parágrafo, o caráter educativo da escola ficaria a cargo exclusivamente das famílias.

A proposta 1859/2015 visa acabar com a discussão de gênero em sala de aula, proibindo a “utilização da ideologia de gênero, orientação sexual e congêneres ou de qualquer outro tipo de ideologia”. E o PL 1411/2015 tipifica um novo crime: o assédio ideológico, que seria qualquer “prática que condicione o aluno a adotar determinado posicionamento político, partidário, ideológico”. Os professores enquadrados neste crime podem ir para a cadeia por até um ano e meio e pagar uma multa.

 

Saiba Mais

BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem – Educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

Página do Facebook dedicada à crítica do programa Escola sem partido:

https://www.facebook.com/contraoescolasempartido/

 

Texto sobre a campanha de ódio direcionada aos professores:

O ódio aos professores

 

Fernando de Araujo Penna é professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense e autor de “Programa ‘escola sem partido’: uma ameaça à educação emancipadora”. In: MONTEIRO, A. M. F. da C., GABRIEL, C. T. & MARTINS, M. L. B. Narrativas do Rio de Janeiro nas aulas de história. Mauad Editora, 2016. No prelo.

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